A boemia é atemporal
.jpg)
Por Estevão Garcia
Entrou em cartaz nessa última sexta-feira o filme "Noel, o poeta da Vila" (de Ricardo Van Steen, Brasil, 2006). No trailer do filme temos o próprio Rafael Raposo (o ator que interpreta o personagem-título) na função de narrador. O texto da narração em off tem como estratégia de marketing relacionar o estilo de vida de Noel com as gírias e a "ginga" dos dias atuais. Ou seja, há um desejo de atingir o público jovem, de desviá-lo do preconceito habitual que o afasta de um filme "de época". O que poderia convencer um adolescente a pagar um ingresso para assistir um filme brasileiro ambientado nos anos 30 e cheio de música de "gente velha"? A resposta que os produtores encontraram foi a de sublinhar o processo de identificação entre Noel e o público jovem. Há no cotidiano de Noel: farras, cerveja, festas, noites infinitas, sexo, música. Tudo o que está relacionado a hábitos e a interesses usualmente associados à juventude, existe no dia a dia do compositor. Noel, morto de tuberculose aos 26 anos de idade, ainda era um jovem e vivia cada segundo de sua existência intensamente. Noel era um hedonista de carteirinha e esse aspecto é no trailer evidenciado. Ouvimos o ator-narrador anunciar "O cara já era baladeiro muito antes de inventarem a expressão". Através dessa frase, sentimos que a década de 30 não está assim tão distante e tão lá afastada de nós, afinal nela também era possível "sair para a balada". O trailer então continua: "Ele ainda não tirava onda, mas já era um rapaz folgado". O "já" aplicado ao comportamento de Noel, além de afirmar que tudo o que a juventude faz hoje em dia já se fazia há 70 anos atrás, ressalta o quanto ele estava a frente de seu tempo. Noel era um cara visionário, um poeta em todos os sentidos, "ele era torto, mas entortava como ninguém".
"Ele era feio, mas tinha lábia". Noel quase não tinha queixo, tinha a boca torta, era desajeitado e atrapalhado, mas... era um gênio. Noel vencia as adversidades exalando talento. Eu já tinha visto o filme antes de ver o trailer. Vendo o trailer, fiquei com vontade de assistir ao filme novamente. Se a função de um trailer é estimular a vontade do espectador para que ele volte ao cinema e assista àquele filme, esse a executa muito bem. E além disso, está completamente afinado ao filme que anuncia. A força, extraída da biografia de Noel, que Ricardo Van Steen desejou transpor ao cinema, está presente nos dois: no mostruário do prato e no prato principal. "Noel", como já indicado no trailer, se preocupa em se deter em apenas um determinado recorte da vida do poeta. Esse recorte, se pensarmos em Noel como o grande artista que foi, é o principal, pois vai desde a sua inserção no universo da música popular urbana brasileira dos anos 20/30 até a sua precoce morte. A trajetória de Noel como compositor/poeta/músico está toda ali, concentrada nesse espaço/tempo eleito pelo filme.
Aqui, não encontramos ressonâncias, por exemplo, com a proposta de um "Madame Satã". No filme de Karim Aïnuz o que se desejava era captar a pele, o corpo e a vivência de um pré-Madame Satã, ou seja, a experiência de um homem anônimo na iminência de se transformar em um artista. Aqui vemos principalmente, Noel já sendo Noel. No filme de Aïnuz o recorte é menor, é mais preciso e específico. Esse fato, entre outros fatores, provoca que o filme fique sem a cara convencional e clássica de uma cinebiografia. "Madame Satã" registra mais a experiência sensorial de seu personagem do que os fatos em si. Os seus dados biográficos só tinham espaço no momento em que foram lidos por um delegado ao descrever a sua ficha "suja" na polícia. Mais do que optar por fazer um recorte mais longo e mais reconhecido/celebrado da vida de seu biografado, a principal diferença entre "Noel" e "Madame Satã" é sem dúvida alguma a estratégia utilizada na conversão de uma biografia em expressão estética. Não queremos dizer aqui qual das duas estratégias é a melhor e sim como cada uma delas foi aplicada. "Madame Satã" apenas escolheu a sua estética e as suas expressões plásticas/poéticas como um dado maior. "Noel", sem colocar a poesia totalmente em segundo plano, a partir de sua segunda metade, se preocupou por demais na apresentação dos fatos e dos acontecimentos verídicos. Apresentou maior feição de uma cinebiografia comum, aquele que didaticamente sente a necessidade de informar e situar o espectador. O final, com a morte de Noel e a sua "despedida" da Vila, dos amigos e de suas mulheres, executa um retorno à poesia e ao que o filme mostrou no início.
Marcadores: Cinema/Crítica
0 Comentários:
Postar um comentário
Assinar Postar comentários [Atom]
<< Página inicial