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segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

O ano em que a neve saiu de férias


Texto, fotos e vídeos de Anna Azevedo*

BERLIM. O 58° Festival Internacional de Cinema de Berlim terminou ontem, domingo, com a exibição dos últimos filmes da grade da programação. O resultado saiu no sábado à noite, e a escolha de "Tropa de elite" como o melhor filme foi o capítulo final de uma edição da Berlinale que deixou em todos uma sensação de que em tudo este ano não foi igual àquele que passou. A começar pelo tempo. Comenta-se por aqui que em 58 anos de festival, este foi o primeiro em que a neve e o frio não deram o ar da graça.

A Berlinale é conhecida como o festival do gelo, pois dentre os três maiores eventos de cinema do mundo (Cannes, Veneza e Berlim) é o unico realizado no pico do inverno, com a neve cobrindo as ruas, os corvos grunhindo e sobrevoando a cidade ao fim do dia, as árvores carecas e os convidados cruzando as strasses encolhidos, praticamente só com os olhinhos de fora.

Em 2008, estranhamente, a temperatura se manteve sempre acima de zero, em torno dos 8 graus durante o dia, e o tal do vento siberiano que varre esta planície soprou para outros lados. Aquecimento global? Desta forma, a Potsdammer Platz, o QG da Berlinale, mais do que nunca virou um vai-e-vem frenético de gente de todas as partes do mundo correndo de uma sessão para outra, entrando e saindo dos metrôs: mais de 19 mil pessoas de 120 países, quatro mil jornalistas, 200 mil ingressos vendidos, 400 filmes, 30 salas de cinema vendendo ingressos por uma média de 7 euros, cerca de R$ 18. Ou seja: pouco mais do que pagamos, no Brasil, cerca de R$ 16 o ingresso adquirido por pessoas que ganham menos da metade de um berlinense.
E neste veranico de inverno tão atípico, os filmes...

Salas cheias

A Berlinale consegue mobilizar a classe média berlinense, profissionais liberais, estudantes, jovens. Uma sessão de filmes de curta-metragem, numa quarta-feira às 14h, por exemplo, consegue estar tão lotada quanto uma pré-estréia internacional num fim de semana à noite. Não há salas de cinema vazias na Berlinale.



Berlim é um festival pró-ativo, ou seja, os cineastas convidados não fazem turismo na cidade. Uma vez aqui, ao trabalho! Trata-se de um festival que proporciona à platéia o contato direto com os diretores, que cumprem uma rotina de aparecer em todas as sessões de seus filmes para, ao fim, responder as perguntas do público, fazer fotos, além de entrevistas e outras atividades.

É um festival para encontros de negócios, todos estão conversando, tentando fechar uma co-producão, Berlim é a hora e o local. O Brasil contou com um serviço de divulgação dos filmes nacionais que veio para substituir o trabalho antes realizado pelo Grupo Novo de Cinema nos festivais internacionais. Mas que, infelizmente, não cumpre integralmente a tarefa para a qual os nossos impostos o paga. Para o filme estar na lista dos que serão trabalhados é preciso ser associado a uma entidade de produtores, pagar uma mensalidade, ou seja, os pequenos produtores, ou mesmo os diretores independentes e que realizam seus filmes sem suporte de uma grande produtora, não têm seus filmes divulgados. Fica, então, a pergunta: o que mudou do criticado modelo anterior do Grupo Novo de Cinema para o atual? A caipirinha da happy hour continua a mesma.

Costa-Gavras e o Chile: amor eterno

Mas os grandes negócios são fechados, mesmo, no mercado do festival, que acontece a poucos metros de onde estava o posto de divulgação dos filmes brasileiros. Ali, distribuidores brasileiros independentes, como o caso de Daniela Riberio, da Iaiá Filmes, burlaram criativamente o fato de não fazerem parte da tal da associação de produtores e dividiram espaço com vendedores de filmes de outros países. Segundo Daniela, a Iaiá, do Rio de Janeiro, saiu de Berlim com um saldo positivo. Um dos filmes com pré-venda fechada em Berlim foi "O grão", de Petrus Cariri, ainda inédito no Brasil, mas já com prêmios internacionais. Foi ali também que o cineasta greco-francês Costa-Gavras, presidente do júri deste ano e diretor de "Missing", filme seminal sobre a ditadura Pinochet, apareceu para apoiar a divulgação dos filmes chilenos.



Mesmo sem a devida exposição, foi um ano excepcional para o cinema brasileiro em Berlim. Na competição principal de longas, "Tropa de elite" trouxe para o país o segundo Urso de Ouro da História – o anterior veio com "Central de Brasil", de Walter Salles, em 1998. Na seleção oficial de curtas havia o experimental "Drežnica", dirigido por mim. Nas mostras paralelas, "Mutum", de Sandra Kogut, "Maré, nossa história de amor", de Lucia Murat, "Cidade dos homens", de Paulo Morelli e "Estômago", de Marcos Jorge. Havia, ainda, os curtas "Tá", de Felipe Sholl, que abriu as sessões do "Maré", e "Café com leite", de Daniel Ribeiro, na Generation 14 Plus. Estes dois últimos chegaram discretos, pouco divulgados e saíram de Berlim engrossando a nossa lista de prêmios: o Teddy Award de melhor curta-metragem de temática homossexual foi para o carioca "Tá". E o prêmio de melhor curta-metragem infanto-juvenil foi para o paulista "Café com leite", também de temática gay.

"Tá" não fora incluído na relação de filmes divulgados pelo estande de filmes do Brasil, patrocinado pelo programa de exportação do governo, a Ampex, contou Felipe, enquanto trocava contatos com a diretora argentina Albertina Carri, de "La rabia". Sozinho, mas agora com um Teddy na mala, estava lá Felipe divulgando o filme dele e travando contatos importantes para trabalhos futuros. Duas tevês se interessaram em adquirir os direitos do curta brasileiro.

A hora e a vez da Romênia

Desde o último Festival de Cannes, vencido pelo romeno Christian Mungiu com "4 meses, 3 semanas, 2 dias", a Romênia parecia ser a bola da vez do mercado cinematográfico. Havia muita propaganda oficial do cinema romenos espalhado pela Berlinale, apesar de o país contar apenas com dois filmes no festival, "Um bom dia para se ir à praia" e "Tarde demais", além de uma jurada, a produtora Ada Salomon, todos na competição de curtas, a Berlinale Shorts. Não deu outra: o excepcionalmente bem dirigido "Um bom dia para se ir à praia" levou o Urso de Ouro de melhor curta-metragem, reforçando o clima de ser a vez da Romênia. Para membros da equipe do curta vencedor, este era, realmente, um bom momento para o cinema dquele país.

Gays e música

Apesar de o Festival de Berlim ter um prêmio dedicado aos filmes gays, o Teddy, este tema foi uma constante neste ano, presente em número significativo em todas as mostras da Berlinale. A principal sessão do festival, a Panorama, ganhou o apelido de Panorama Gay.

Outra constante em Berlim este ano foram os filmes sobre músicos, o que trouxe à Berlinale um certo ar pop. Não à toa, o texto de boas-vindas do catálogo recebeu o título de "Let's rock!". Na abertura do festival, dia 7, ouvi a seguinte conversa na fila de venda de ingressos:
- Estou aqui para realizar os seus desejos – disse o bilheteiro para uma credenciada em busca de ingressos.
Intercedeu a amiga da cabine ao lado:
- E quem é que realiza o seu sonho de ver os Rolling Stones hoje?

Pois é, o quarteto de senhores roqueiros esteve em Berlim para a première do filme "Shine light", de Martin Scorsese, um documentário que flagra os bastidores de recentes shows da banda. Madonna também estreou como diretora em Berlim com "Filth and wisdom", uma ficção que acabou surpreendendo os críticos que esperavam ver na tela um grande desastre e saíram da sala com cometários jocosos do tipo "até que com boa vontade podemos dizer que não é péssimo".

Patti Smith fala ao público sobre seu filme


Patti Smith, a cantora americana considerada a Bob Dylan de saias, ganhou um retrato do fotógrafo Steven Sebring, que ao longo dos últimos 11 anos andou por aí filmando a performance nos palcos, sua vida privada e suas múltiplas facetas: cantora, artista plástica, mãe, filha, poetisa. O resultado, "Patti Smith: Dream of life", é um deslumbrante documentário, com belas e tocantes imagens e que foge do lugar-comum que seria retratá-la na maior parte do tempo como cantora. Ao fugir do formato documentário que mais parece um DVD, Sebring acertou em cheio, confiou em suas imagens, em sua capacidade de através delas chegar bem próximo da alma da artista. Um deslumbre em tela! Patti também esteve em Berlim, com aquele seu jeito meio largadão, e cumpriu a rotina dos demais convidados da Berlinale que, ao fim das sessões, sobem ao palco para conversar com o público. Disse ela que em nenhum momento se sentiu incomodada com a presença da câmera em sua vida privada: "Sebring, é mais do que cineasta, mais do que amigo, é muito mais um irmão".

Na linha musical ainda vimos o documentário produzido através de acordo de co-produção Brasil (Videofilmes)-Argentina, recursos da Petrobras e chancela da Ancine, "Café de los maestros", uma espécie de "Buena Vista Social Club" dos velhos regentes das clássicas orquestras de tango argentina, dirigido por Miguel Kohan e Gustavo Santaolalla. Para quem gosta de aproveitar o som dolby dos cinemas para escutar boa música, o filme é um prato cheio, entreguem-se à música e esqueçam de cratividade documental. E não parou por aí: de "Heavy metal in Baghdad", um documentário sobre bandas de heavy metal do Iraque, saiu uma das frases mais comentadas da Berlinale, dita por um roqueiro reclamando da perseguição que eles sofrem em seu país: "Se a gente usa cabelo comprido, vão dizer que somos judeus. Se balançamos a cabeça pra baixo e pra cima vão dizer que somos judeus rezando". Enfim: teve música como tema por todos os lados, incluindo no brasileiro "Maré" e em "Wild combination: a portrait of Arthur Russel". E por aí foi...

Berlinale docs

Os documentários de modo geral seguiram uma linha clássica, raros inovaram em linguagem e em temas. "Patti Smith" é uma exceção em termos de linguagem. A política e a religião foram tópicos recorrentes, sobretudo os conflitos no Oriente Médio. Em "Shaida-Brides of Allah", de Natalie Assouline, por exemplo, temos um documentário que segue o formato regular de entrevista, mas nos surpreende pelo tema e pelo texto: mulheres-bomba ou colaboradoras de homens-bomba palestinas são entrevistadas numa prisão israelense. Os relatos nos faz tatear a lógica por trás dos atentados suicidas. Contam que um homem-bomba, por seu gesto, vai para o Paraíso com direito a dezenas de virgens. Já a mulher-bomba segue igualmente para o Céu e terá a honra de ser a amante principal do homem-bomba. Lá pelas tantas, o microfone flagra uma conversa entre duas mulheres-bomba:
- O que você disse pra a diretora?
- O discurso que combinamos.

Na toca do Urso

A cerimônia de entrega dos principais prêmios do festival acontece no Berlinale Palast, na Potsdammer Platz. Trata-se de um complexo com 1.300 lugares espalhados por cinco andares e que pode tanto funcionar como espaço para projeção de filmes quanto para shows e teatro. Uma estrutura moderna, como todos os demais prédios da Potsdammer, uma praça que, antes da queda do Muro de Berlim, em 1989, era uma zona vazia que dividia a Berlim Ocidental da Oriental, próximo ao Portão de Brandemburgo.



Ali, marco representativo da nova capital unificada, encontramos mostras da mais moderna arquitetura européia, com destaque para o complexo Sony Center. Parece, a bem da verdade, uma Barra da Tijuca com muito mais bom gosto. Os berlinenses costumam torcer o nariz para o Sony Center. Mas o bom gosto, característica da arquitetura e do design alemão (vale lembrar a escola Bauhaus) termina, estranhamente, no subsolo do moderníssimo Berlinale Palast, a toca dos ursos do cinema. No underground, onde acontecem as principais festas de abertura e encerramento da Berlinale, como bem associou um produtor alemão no encerramento do festival, parece que estamos no set do filme "Um drinque no inferno", de Robert Rodriguez. Você sai da modernidade e entra numa espécie de castelo mal-assombrado. Até os anjos, ícones de Berlim, ali são barrocos feios tristes, amadores.



Mas foi para o Berlinale Palast que 1.300 pessoas seguiram no sábado à noite para testemunhar para que mãos iriam os ursos de 2008. Tapete vermelho estendido para as estrelas passarem. Estrelas eternas, como Constantin Costa-Gavras e Luis Buñuel, diretor homenageado com uma retrospectiva de sua obra. Dentre as estrelas novas, muitas já haviam debandado, caso de Wagner Moura, que andou por Berlim com uma cara de quem já não agüentava mais ouvir as críticas negativas sobre "Tropa de elite", no qual interpreta o protagonista, o Capitão Nascimento. Estrelas que brilham em outros céus, como os Rolling Stones e Maddona também não estavam mais lá. Cotadas para o Urso de melhor atriz, Tilda Swinton, de "Julia", foi-se no início da semana. Assim como Kristin Scott-Thomas, protagonista de "Il y a longtemps que je t'aime", de Phillipe Claudel, da França. José Padilha ficou, sobretudo depois de um telefonema na manhã de sábado, vindo da direção do festival, informando que "Tropa de elite" havia ganho um prêmio, que seu regimento deveria ficar. Qual seria?

A cerimônia seguiu pontuada pelas piadas do sempre divertido Dieter Kosslick, diretor do Festival. Os ursos mais esperados, como sempre, são o de melhor atriz e melhor filme. Em Berlim, só o melhor filme recebe Urso de Ouro, as demais categorias levam pra casa o Urso de Prata. O de melhor atriz foi para uma atriz queridinha na Inglaterra, Sally Hawkins, por "Happy go lucky", de Mike Leigh.



Coube ao presidente do júri, Costa-Gavras, anunciar o nome do filme que levaria para casa o Urso de Ouro. Revelou o título em língua original, o português: era o brasileiro "Tropa de elite". Deu zebra! Representando o filme, na platéia, estava o diretor, José Padilha, os produtores Marcos Prado e Eduardo Constantino, e a atriz Maria Ribeiro, que interpreta a mulher do Capitão Nascimento. Wagner Moura deve ter se arrependido muito de ter abandonado a tropa em Berlim. Apesar de previamente avisados de que havia um prêmio para eles e do fato de que, àquela altura da cerimonia, por eliminacão, só restaria o Urso de melhor filme, os quatro mesmo assim deram um pulo nas cadeiras. A platéia, majoritariamente alemã, demorou um certo tempo para entender que aquele título anunciado em português significava que o Urso estava indo para o polêmico "The elit squad". As palmas foram discretas, mesmo certa vaia foi ouvida. Filme polêmico é assim. José Padilha, que desfilou pela Berlinale com modelito gorrinho na cabeca e cachecol no pescoço, subiu ao palco junto com Marcos Prado e Constantini. Referiu-se a Costa Gavras como um diretor que muito influenciou o cinema latino-americano e deixou o palco da Berlinale com um certo jeito de quem ri por ultimo ri melhor.

"Tropa de elite" não foi bem recebido pela crítica brasileira, nem pela crítica presente ao festival. Esta, para piorar, teve que assistir à sessão com tradução simultânea o que, no caso de "Tropa de elite", é de se imaginar o caos que deve ter sido a compreensão dos diálogos.

Entre os jornalistas, na entrevista coletiva dos vencedores, estava Leon Cakoff, diretor da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, veteraníssimo em festivais internacionais e que dizia estar assistindo pela primeira vez à vitória de um filme brasileiro em Berlim: "Quando 'Central do Brasil' venceu, eu estava no Brasil, foi o ano em que o meu filho nasceu".

Foi uma surpresa geral a vitória de "Tropa de elite" em Berlim. Mas numa Berlinale repleta de filmes com atores-mirins e temática gay em demasia, ao ponto de se tornar monocórdia para um festival que se quer plural em vários sentidos, não é tão difícil se entender os motivos que levaram o time comandado pelo guerrilheiro cinematográfico Costa-Gavras conceder o Urso de Ouro para "Tropa de elite". Berlim é um festival político. Talvez Costa-Gavras, assim como os demais jurados, uma vez que a decisão sobre o Urso de Ouro foi unânime, tenha enxergado em "Tropa de elite" um filme denúncia sobre tudo o que ele lutou contra em sua cinematografia: a tortura, as forças de repressão.
Com o Urso, "Tropa de elite" ganha novo fôlego. E com ele, a polêmica que acompanha o filme.

No sábado, o vento siberiano voltou a soprar sobre Berlim. A noite do Urso de Ouro foi fria, os termômetros desceram para menos 3 graus, em média. Só quem não estava nem aí pro frio era a tropa do Padilha, que agora tem um urso para cuidar.

Padilha sobe ao palco para receber seu Urso de Ouro



*Anna azevedo é cineasta e participou do Festival de Berlim com o filme "Drežnica".

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