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segunda-feira, 18 de agosto de 2008

PhD em Cinema Brasileiro: Locações reais: prisões, favelas, igrejas e quetais

Por Paulo Henrique Souto


Houve um tempo em que os produtores usavam locações reais para os filmes, raras cenas em estúdios. Trampei em vários filmes rodados nos locais mais cabeludos. Filmava-se "in loco", foi assim em "O escolhido de Iemanjá" (1978), de Jorge Durán, vejam a sinopse: "Por causa das explosões provocadas por uma construtora, os moradores de uma favela no morro próximo dali ficam com medo de desabamentos. A comunidade procura um pai-de-santo para pedir ajuda e este diz que Iemanjá escolheu uma pessoa para resolver tudo: o pescador Nelson (Nuno Leal Maia). Só que a construtura também toma suas medidas: contrata o bandido Tucano (José Dumont) para eliminar o pescador". Elenco: Oswaldo Barreto, Henriqueta Brieba, Ivan de Almeida, José Dumont, Alvaro Freire, Nuno Leal Maia, Helber Rangel, Rui Resende, Maria Rosa, Anselmo Vasconcelos. A assistente do Durán era Mariza Leão, hoje competente produtora, amiga querida. Fui produtor de set, Jece Valadão era o patrão. Plano um: a favela (hoje chamada de comunidade) escolhida foi a de Santa Marta, ou Dona Marta, Botafogo, naquela época um terço do seu tamanho. As seqüências do pescador, personagem do simpático Nuno Leal Maia, filmamos atrás do Cemitério do Caju, numa comunidade de pescadores real. Fato curioso: eu, que jamais havia entrado em um barco, recém chegado de Minas, de repente me pego de contra-regra jogando flores da proa do barquinho. Éramos muito bem recebidos nas locações, os moradores colaboravam com prazer. Numa delegacia na Zona Norte, um preso na hora de rodar aprontava uma barulhada e o delegado gritava: "Cala a boca, assim que o pessoal sair você me paga". E num terreiro em Caxias, eu, como sempre, fazendo de tudo um pouco, estava subindo em cima da casa de Exu pra puxar luz do poste. Quase caí da escada, pois o pai de santo apavorado veio me alertar. Calmo, respondi, Exu vai entender, estou trabalhando.

Seqüência dois, desta vez como ator em "O rei do Rio" (1985, foto), de Dias Gomes, direção de Fábio Barreto, filmamos dentro da Frei Caneca, uma semana ou mais, os presos faziam figuração. Durante uma seqüência, um figurante negão me vendo naquela roupa de barriguinha de fora - figurino de Aniso Medeiros, um luxo -, fiz um prisioneiro bicha enxerida. O negão falou, com voz de trovão: "Vou te perguntar uma coisa, tu não me leva a mal: tu é assim lá fora?". Um outro figurante, sentado do nosso lado, indignado, respondeu por mim: "Qualé, tu não viu ele ontem, com três filhos na TV Globo, mermão?". No que o negão retrucou: "Peraí, não me confunda, tu não é assim lá fora, ontem foi um pai de família, não me leva a mal, mas tu é muito é cínico". Adorei, foi o melhor elogio de ator que recebi. Por causa deste personagem do "Rei do Rio" fiz "Running out of luck" (1986), direção de Julian Temple, mais um prisioneiro, desta feita ao lado de Mick Jagger. No dia do acerto do cachê, na produtora de Renato Aragão, no corredor comprido, dou de cara com o mito Mick Jagger, respirei fundo e falei no meu inglês norte mineiro: "I'm happy because make film with you". E ele, às gargalhadas respondeu: "Me too". E me mostrou a sua linguona. Desta feita filmamos na penitenciária de Niterói, um prédio colonial, lindo. Ensinei aos presos figurantes que podiam pedir autógrafo pro Mick Jagger, que foi instruído pra não negar nada ao pessoal do presídio. Orientei aos presos que vendessem as assinaturas depois. No dia seguinte, um prisioneiro me chamou no canto: "Peguei um autógrafo ontem, esta noite fiz mais uns trezentos, estou vendendo pra um fã clube em São Paulo, vou pagar advogado". O cara era estelionatário. No almoço, sentado na mesa do Mick Jagger (a convite do seu maquiador, e braço direiro, que foi com minha cara) contei pra todos. Mick Jagger, mais uma vez, caiu na gargalhada. Raras exceções, hoje os filmes são rodados em estúdio, sem a malícia das locações de um tempo de Brasil melhor. Um dia voltará. Oxalá. Para honrar a palavra kinema, do grego movimento: as pedras do cinema continuam rolando. Até o próximo episódio.

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1 Comentários:

Blogger Evelina disse...

delícia de estória Paulo Henrique!Relatos de como fazer o movimento...bjs

6 de setembro de 2008 às 05:25  

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